terça-feira, 15 de janeiro de 2008

A Outra Intimidade.


Deixamos, nós, pessoas portadoras de deficiência, o Século XX com uma bandeira de duas cores na mão: inclusão – social e econômica. Enorme difícil de carregar, do tamanho do mundo que é preciso dobrar pra que seu significado o transforme. Inclusão social no sentido amplo de direito à cidade, ou talvez de modo mais geral de acesso a convivência com o outro. Inclusão econômica, o sentido de direito a participar de mecanismos de interdependência que são as matrizes da economia contemporânea – cujos elementos básicos, no que interessa à causa, são o trinômio emprego, salário e consumo. Não é exatamente uma bandeira que esteja para ser recolhida. Ainda há tudo por fazer nessas duas áreas. Porém, uma outra está no horizonte, aguardando os passos a serem dados na inclusão social e econômica, para que possamos, lá adiante, vir a empunhá-la. Falo do direito da pessoa portadora de deficiência à intimidade como um subproduto da inclusão tecnológica.
De fato, o direito individual (constitucional) à intimidade, tal como hoje é concebido, é contemporâneo da revolução tecnológica. Surgiu, por, digamos, causação negativa. A revolução tecnológica tornou “possível uma devassa da vida íntima das pessoas, insuspeitada por ocasião das primeiras declarações de direitos”1, por meios de teleobjetivas, escutas telefônicas, microcâmeras etc... Justo porque se tornou possível romper a intimidade, então passou a ser necessário protegê-la. A intimidade é, hoje, vista como ligada ao direito à imagem – ou melhor, ao direito à não-imagem, no sentido de não termos, por exemplo, nossos tombos transmitidos em rede nacional por um desses patéticos programas de TV dominicais. Aquele que tem sua intimidade violada tem direito a indenização (Constituição Federal, art.5, inciso X).
Mas o que pretendo fazer notar é que há, na revolução tecnológica, outro subproduto que afeta a intimidade, porém via causação positiva. A tecnologia permite hoje, que uma pessoa com limitações motoras e/ou sensórias faça sozinha coisas que antes seriam impossíveis de fazer. A tetraplegia vencida pela cadeira-de-rodas motorizada, a surdez vencida pelo closed caption, a cegueira vencida por um voice decoder: acessos alternativos ao mesmo resultado, permitidos pela tecnologia. Há exemplos infinitos de bugigangas tecnológicas para melhoria de nossa (nós PPDs - Pessoa Portadora de Deficiência) qualidade de vida. A tecnologia permite à PPD o usufruto da intimidade que, sem essa tecnologia, seria invadida pela presença de outra pessoa.
Enquanto foi impossível ouvir o que só era visível, ler o que só era audível e locomover-se por tração animal – no sentido amplo, também..., enquanto, enfim, não havia tecnologia para resolver essas limitações, a intimidade da pessoa portadora de qualquer delas estava sujeita, inapelavelmente, à dependência de um santo ou santa complacente que fizesse as vezes de seus olhos, ouvidos, pernas ou braços. De higiene pessoal a namoro, de curiosidade personalíssima a esquisitices, temos o direito de ficar sós ou a sós, se houver meios para tanto, a despeito de nossas limitações físicas e sensoriais. E meios há.
Ora, se o legislador decidiu que tem acesso a tecnologia, Estado incluso, não pode invadir a intimidade de outrem, então seguindo o mesmo raciocínio, mas invertendo-se os pólos, não pode o legislador permitir que alguém (Estado incluso) penetre a intimidade de uma PPD, justamente porque há tecnologia para garantir à PPD essa intimidade. Num caso, a tecnologia é vilã ; noutro, ela é heroína.
Para avançar na tese, no mesmo artigo 5o da Constituição Federal (inciso III), está gravada a garantia de que “ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante”. Se a intimidade é um direito humano, sua violação é um tratamento desumano. Essas duas garantias constitucionais se complementam, para estatuir que ninguém será submetido a tratamento que viole a sua intimidade.
Nesse ponto, defino o direito da pessoa portadora de deficiência à intimidade como aquele à confidência e ao sigilo de seu corpo e de sua mente, qualquer que seja o tratamento a que essa pessoa esteja submetida. O direito ao acesso às novas tecnologias para garantir seu direito á intimidade tem, portanto, base constitucional.
Na interpretação tradicional do Direito à Intimidade, sigilo e confidência são brandidos como direitos a serem opostos ao avanço tecnológico; na interpretação proposta aqui, é o avanço tecnológico que se opõe à violação atávica do sigilo e confidência do corpo e da mente da pessoa portadora de deficiência.
Entretanto, a indenização pela violação da intimidade não é instrumento bom para garantir o direito de que se trata aqui. Indenização é re-composição de uma situação anterior, rompida. O que se pretende garantir é justamente o rompimento da situação atual, dessa violação contínua e constante de intimidade, que só o fato novo tecnológico permite interromper.
Ou seja, estamos diante de um direito de natureza diferente daquele à intimidade já garantido pela Lei e pela jurisprudência. A intimidade garantida é direito civil, individual, da mesma natureza daquelas da primeira leva que o Rei João Sem Terra teve de engolir, séculos e séculos atrás. Este aqui, não. É de outra cepa: é um direito social. De terceira (e, até o momento, última) geração. Na “evolução tecnológica” do Direito, surgiram, depois dos direitos civis (do sujeito contra o Estado), os direitos políticos (de participação na gestão e no controle do Estado); e, no século passado (XX), os direitos econômicos e sociais. Estes últimos são aqueles pelos quais a sociedade (Estado e outras estruturas públicas) fica(m) obrigada(s) a prover ao sujeito uma serie de coisas a que ele pode não ter acesso por seus próprios meios.
Há quem defenda que esses direitos de última geração dependem da capacidade da sociedade poder arcar com as despesas dele decorrentes. São direitos para a sociedade que já resolveram seus problemas básicos, ao mesmo tempo que são direitos que atacam esses mesmos problemas básicos, em suas múltiplas nuanças.
Ainda que, concretamente, tenhamos de esperar um bom tempo na fila para vermos as PPDs ter garantido seu direito á intimidade por meio de mecanismos de inclusão tecnológica, que esteja aqui plantada a semente dialética: tomar banho sozinho é direito à intimidade, andar de cadeira motorizada é direito à intimidade, ler seus próprios e-mails é direito à intimidade, ver seus próprios programas de Tv é direito à intimidade – enfim superar, com apoio tecnológico e não de outro individuo, a limitação de uma deficiência é defender a sua intimidade.
Se queria uma bandeira nova em folha para o Século XXI, enrole-se nesta e vá para a rua!

Silmar José Cechin, Professor do Colégio Estadual São Pedro, Presidente da Câmara Municipal de Vereadores, Presidente da Apae Raio de Luz, Analista Previdenciário e portador de deficiência (Inf. QUALITÁ n 27).